Língua e Identidade I

 

MITO DA CABEÇA MUNDURUKU E FORTALECIMENTO DA IDENTIDADE: ENTRE A LÍNGUA E A ETNOLOGIA

Jonise Nunes Santos – Universidade Federal do Amazonas

Admilton de Freitas Chagas Filho – Universidade Federal do Amazonas

 

O trabalho é produto das atividades do Projeto Revitalização e Fortalecimento da Língua Munduruku nas atividades pedagógicas dos acadêmicos indígenas da Turma Munduruku do Curso Formação de Professores Indígenas, submetido ao Programa de Atividade Curricular de Extensão, da Universidade Federal do Amazonas, para ser realizado com os alunos da turma de Letras e Artes. Os objetivos voltaram-se a realizar oficina para contribuir com as ações de revitalização da língua munduruku; valorizar o uso das histórias e conhecimentos do povo Munduruku nas atividades pedagógicas no cotidiano das escolas indígenas; revitalizar, pela narração e descrição, conhecimentos tradicionais do povo Munduruku por meio da atividade docente; produzir materiais didático-pedagógicos na língua munduruku; instrumentalizar os acadêmicos com metodologias e estratégias para uso dos conhecimentos e da língua Munduruku em suas atividades docentes na aldeia. Ressalta-se que os alunos da licenciatura já atuam como professores em escolas multisseriadas de comunidades indígenas, logo deveriam atentar para os princípios da Educação Escolar Indígena (interculturalidade, principalmente). Nesse sentido, para realização das atividades, na perspectiva de contribuir para elaboração de material didático na língua munduruku e para a concretização da interculturalidade, durante as aulas de Língua Indígena e Portuguesa, foram desenvolvidas atividades para elaborar bancos de dados de palavras e “livros” com as narrativas em língua portuguesa e indígena. Assim, as ações foram conduzidas à luz das orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1996), de Hernandez (1994, 1998) e de Menget (1993), ou seja, utilizou-se dos conhecimentos prévios dos alunos para se fazer uma leitura inicial sobre o mito da Cabeça Munduruku (tema gerador), posteriormente, foi realizada apresentação, leitura e análise do texto de Menget (1993), para então, proceder com a discussão, elaboração de textos sobre a discussão para ampliação do conhecimento sobre o povo e para elaboração de projetos pedagógicos para serem desenvolvidos nas aldeias com os alunos das escolas, nas quais os acadêmicos atuam como docentes. Dos textos produzidos, realizou-se, ainda, atividade de análise linguística dos textos e reflexão sobre as diversas disciplinas e conteúdos que podem ser trabalhados, a partir da atividade de leitura e releitura de um conhecimento tradicional do povo Munduruku. A produção dos acadêmicos foi organizada, resultando em um arquivo digitalizado, na perspectiva de ser utilizado como material didático suplementar para as escolas. Além disso, os professores em formação foram orientados a realizar atividades, similares às realizadas com eles, nas aldeias, de modo que as crianças, adolescentes, jovens e adultos indígenas, bem como anciãos, lideranças e outros membros das aldeias possam também participar da construção de materiais. Assim, os comunitários serão envolvidos na atividade e estarão contribuindo efetivamente no processo de revitalização ou fortalecimento linguístico e cultural. Desse modo, partindo da leitura de elementos do próprio povo, a atividade de extensão ultrapassou a perspectiva extensionista, desdobrando-se em ações de pesquisa, ensino aprendizagem e fortalecimento da identidade munduruku, considerando que o conhecimento do povo passa a ser o centro da discussão escolar e estimulando o envolvimento dos demais comunitários nas atividades educacionais, além de poder contribuir efetivamente para a documentação e revitalização dos conhecimentos da língua e cultura do povo Munduruku.

Palavras-chave: Língua. Identidade. Mito da Cabeça Munduruku.

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Identidades multifacetadas e ‘hibridismo’ linguístico:
um estudo de caso da comunidade Kotiria (Tukano Oriental, região do Alto Rio Negro)

Kristine Stenzel (UFRJ)

Velda Khoo (University of Colorado at Boulder)

Estudos sobre região multilíngue do Alto Rio Negro no noroeste amazônico apontam a especialização funcional de língua como marca de identidade individual e princípio de organização social entre grupos etnolinguísticos (Sorensen 1967; Jackson 1983; Chernela 1993; Aikhenvald 1999; Stenzel 2005, entre outros). Nesta região, falantes de mais de vinte línguas de quatro famílias linguísticas distintas, interagem através de redes de casamento, troca econômica e aliança política. Tal interação ao mesmo tempo engendra pontos de aproximação cultural e mecanismos de manutenção de identidades diferenciadas, principalmente no nível linguístico (Epps & Stenzel 2013). Gomez-Imbert (1991) foi a primeira a jogar luz sobre os esforços ‘explícitos e conscientes’ dos falantes da região em manter os códigos linguísticos distintos, como mecanismo de preservar identidades grupais e de resistir a processos de convergência e assimilação, e Aikhenvald (2002) contribui com um perfil da ‘ideologia linguística’ regional que, baseada na noção de ‘lealdade’, impõe normas de comportamento linguístico—a mais importante sendo uma aversão à fala ‘misturada’, enquanto Chernela (2004) discute o papel fundamental das mulheres na orientação das crianças ao uso do ‘patrilect’, língua de identidade social e alvo desta ‘lealdade’.

Artigos recentes de Chernela (2013) e Shulist (2015) nos apontam um quadro atual mais complexo, questionando tanto a noção de relação língua-identidade estreita e única, quanto a premissa de que princípios ideológicas são automaticamente traduzidas em comportamentos linguísticos conformativos e previsíveis. Profundas mudanças na região, principalmente no último meio século, têm provocado redefinição de categorias ideológicos tradicionais e ajustes de comportamento linguístico, nos desafiam a desenvolver estudos mais contextualizados, e a considerar hipóteses relacionadas à construção de identidades ‘multifacetadas’ e de práticas ‘multilíngues’ diferenciadas.

Nosso estudo contribui a este debate com uma análise de dados de fala natural de uma jovem Kotiria (falante de Kotiria, Tukano e Português). À primeira vista, a narrativa desta jovem contraria o que a literatura nos leva a esperar—conformidade à norma de ‘não mistura’ de línguas diferentes—por demonstrar uso sistemático de elementos de múltiplos códigos linguísticos. Estes incluem casos mais ‘típicos’ de codeswitching envolvendo itens lexicais nominais e verbais do português, que podem ser entendidos como alternância ‘metafórica’ indexando e criando tanto relações sociais (Blom & Gumperz 1972) como noções de self e outro (Gal 1988). No entanto, também encontramos instâncias de codeswitching bastante ‘atípicos’, envolvendo formas pronominais da primeira pessoa exclusiva: (Kotiria), e ʉhsã (Tukano).

Nossa análise das funções destas alternâncias na fala da jovem nos levou a abandonar explicações baseadas na noção de ‘divergência’ — em que falantes negociam identidades ‘separadas’ — e postular uma interpretação de ‘hibridismo’. Argumentamos ainda por um entendimento de multilinguismo não só como um ‘repertório de línguas’, mas como um conjunto de ‘recursos semióticos’ (Hall & Nilep no prelo; Blommaert 2010). A nosso ver, necessitamos reavaliar a visão de ‘língua’ como sendo tão icônica a uma dada cultura que possa ditar e limitar entendimentos de ‘autenticidade’ e impor maneiras estáticas de expressão de identidade, e concluímos chamando maior diálogo entre a pesquisa documental com línguas indígenas e a teoria sociolinguística atual.

Palavras-chave: multilinguismo, identidade, língua Kotiria (Tukano Oriental)

Referências

Aikhenvald, Alexandra. 1999. Areal diffusion and language contact in the Içana-Vaupes basin. In The Amazonian Languages, R.M.W. Dixon e Alexandra Y. Aikhenvald (eds), 207-226. Cambridge: Cambridge University Press.

Aikhenvald, Alexandra. 2002. Language Contact in Amazonia. Oxford: Oxford University Press.

Blom, Jan-Petter & Gumperz, John. 1972. Social meaning in linguistic structures: code switching in northen Norway. In Directions in Sociolinguistics: The Ethnography of Communication, John Gumperz e Del Hymes (eds), 407-434. New York: Holt, Rinehart, and Winston.

Blommaert, Jan. 2010. The Sociolinguistics of Globalization. Cambridge: Cambridge University Press.

Chernela, Janet. 1993. The Wanano (Kotiria) Indians of the Brazilian Amazon: A Sense of Space. Austin: University of Texas Press.

Chernela, Janet. 2004. The politics of language acquisition: language learning as social modeling in the Northwest Amazon. Women and Language 27(1): 13-20.

Chernela, Janet. 2013. Toward a Tukanoan ethnolinguistics: metadiscursive practices, identity, and sustained linguistic diversity in the Vaupés basin of Brazil and Colombia. In Cultural and Linguistic Interaction in the Upper Rio Negro (Amazonia), Patience Epps e Kristine Stenzel (eds), 191-238. Rio de Janeiro: Museu do Indio-FUNAI.

Epps, Patience & Stenzel, Kristine. 2013. Introduction: cultural and linguistic interaction in the Upper Rio Negro region. In Cultural and Linguistic Interaction in the Upper Rio Negro (Amazonia), Patience Epps e Kristine Stenzel (eds), 14-50. Rio de Janeiro: Museu do Indio-FUNAI.

Gal, Susan. 1988. The political economy of code choice. In Codeswitching: Anthropological and Sociolinguistic Perspectives, Monica Heller (ed), 243-263. Berlin: Mouron de Gruyter.

Gomez-Imbert, Elsa. 1991. Force des langues vernaculaires en situation d’exogamie linguistique: le cas du Vaupés colombien, Nord-Ouest amazonien. Cahiers des Sciences Humaines 27:535-559.

Hall, Kira & Nilep, Chad. no prelo. Code-switching, globalization, and identity. In The Handbook of Discourse Analysis, Second Edition, Deborah Schiffrin, Deborah Tannen, e Heidi Hamilton (eds) Malden, MA: Wiley-Blackwell.

Jackson, Jean. 1983. The Fish People: Linguistic Exogamy and Tukanoan Identity in Northwest Amazonia. New York: Cambridge University Press.

Shulist, Sarah. 2015. “Graduated authenticity”: multilingualism, revitalization, and identity in the Northwest Amazon. Language & Communication, http://dx.doi.org/10.1016/j.langcom.2015.04.001 [assessado em 20/06/2015]

Sorensen, Arthur P. Jr. 1967. Multilingualism in the Northwest Amazon. American Anthropologist 69:670-684.

Stenzel, Kristine. 2005. Multilingualism in the Northwest Amazon, revisited. Annals of the II Congress on Indigenous Languages of Latin America CILLA, Austin, Texas. http://www.ailla.utexas.org/site/cilla2_toc_sp.html [assessado em 20/06/2015]

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A autoidentificação étnica e a língua Munduruku:
quem pode ou não ser considerado índio no oeste paraense.

Sâmela Ramos da Silva (UNIFAP)

Os estudos de línguas indígenas na Amazônia abrangem diversos aspectos da pesquisa linguística e, apesar dos recentes avanços, certas áreas deste campo de conhecimento ainda tem produção tímida sobre e nestas línguas. Recentemente, características mais pragmáticas adentram a pesquisa de línguas indígenas, colocando em jogo questões como o sujeito índio e a sua relação com a língua. Assim, este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa de cunho etnográfico realizada com o povo Munduruku (localizados no oeste paraense) sobre a relação entre língua e identidade. Desde fins da década de 90, há um processo de reconstrução da identidade étnica desse povo, por vezes considerada extinta. Nesse contexto, o nosso objetivo é dar visibilidade e refletir sobre o esforço linguístico de resgatar e/ou reaprender sua língua ancestral como resposta à exigência da sociedade majoritária diante de sua autoidentificação, assim como os fatores e condições que desencadearam e sustentam esse fenômeno. Essas exigências de comprovação surgem justamente por conta da ação da colonialidade do poder/saber na subalternização das identidades e línguas indígenas. Assim, embasamos nossas discussões, fundamentalmente, a partir dos estudos pós-coloniais (MIGNOLO, 2003) e do grupo modernidade/colonialidade (QUIJANO, 2005; WALSH, 2009), além de questões a respeito das noções de língua e regimes metadiscursivos, para enfatizar a necessidade de desinvenção e reconstituição de concepções de língua (PENNYCOOK E MAKONI, 2007; SOUZA, 2007; OLIVEIRA E PINTO, 2011). Os dados da pesquisa foram gerados a partir de atividades e ações voltadas para a construção mútua entre pesquisadora e participantes, pautados nas experiências de vida de ambos. Dessa forma, fizeram parte do corpus de nossa pesquisa, textos de observação, gravações dos diálogos e interações em grupo. Segundo Oliveira e Pinto (2011, p. 312), devemos avaliar o “papel da colonialidade do poder/saber na produção epistêmica da linguagem”. A partir dessa afirmativa, compreendemos a violência epistêmica que povos indígenas, como os Munduruku, sofrem ao serem interpelados/pressionados pela sociedade brasileira e órgãos governamentais quanto a sua língua indígena. A comprovação dessa exigência pode ser encontrada na própria Constituição de 1988, onde ter direito a sua língua é também, “tenha uma língua diferente do português para que eu te reconheça como indígena” (OLIVEIRA E PINTO, 2011, p. 329).  Imbuídos nessa reafirmação identitária, o povo Munduruku dialoga e negocia com essas “amarras” impostas pela sociedade nacional, pois mesmo que utilize um construto hegemônico, a saber, a língua, este conceito parte de um processo de apropriação e ressignificação por parte dos indígenas.

Palavras-chave: Língua. Identidade. Colonialidade. Munduruku.

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LÍNGUA E IDENTIDADE: A RELAÇÃO ENTRE OS USOS DA LÍNGUA  APURINÃ (ARUÁK) E A CULTURA DO POVO

Patricia do Nascimento da Costa

Sidney da Silva Facundes

RESUMO:  O objetivo deste estudo é apresentar elementos da língua Apurinã (Aruák) que demonstrem traços da cultura do povo que fala a língua, representando aspectos do modo de vida, da visão de mundo, dos valores tradicionais e do envolvimento com valores externos às suas experiencias de vida. Este trabalho compõe um recorte preliminar da pesquisa  de mestrado que investiga características do uso da língua, que revelam traços da identidade do povo Apurinã. Os apurinã vivem em vários afluentes do rio Purus, na região sudeste do estado do Amazonas. Os procedimentos metodológicos utilizados para a realização deste estudo envolvem levantamento bibliográfico sobre os estudos de Identidade e os referenciais que relacionam os estudos de Identidade aos pressupostos teóricos da linguística, além da análise dos dados que foram coletados em pesquisa de campo, realizada em abril de 2015. Além das fontes de pesquisa listadas acima, também foram consultados trabalhos sobre a língua, realizados pelo professor doutor Sidney da Silva Facundes, da Universidade Federal do Pará, e seus alunos ao longo de mais de vinte anos em pesquisa sobre a língua Apurinã. Durante o trabalho de campo, em abril de 2015, foram aplicados questionários sociolinguísticos e foram coletados dados em formato de relatos pessoais e tradicionais. Para embasar a análise dos dados, recorremos a, além dos aportes teóricos da linguística – em Edwards (2009), que enumera algumas relações entre língua e identidade e em Ilari (2013), para quem “toda língua historicamente dada, a qualquer momento de sua história, está à procura de meios para expressar experiências que assumiram uma importância nova para o grupo social que a fala” – recorremos também ao campo de conhecimento da antropologia, como, por exemplo, em Oliveira (2006) e Cunha (2009). Essa pesquisa é relevante no sentido de agregar aos estudos sobre a língua Apurinã informações que podem revelar, em dados linguísticos, aspectos relativos à cultura e aos costumes. Além da contribuição acadêmica, esta pesquisa também se justifica por integrar, junto a outros elementos, um conjunto de fatores capazes de corroborar a legitimação deste povo, sua cultura e seu direito de existir socialmente.

PALAVRAS-CHAVE:  Língua indígena. Apurinã.  Identidade.