O Curso de Licenciatura Intercultural Indígena (CLII) completou em 2017 dez anos de atuação na formação de professores indígenas no Amapá e norte do Pará. Ao longo dessa trajetória, além de atender as necessidades e demandas apontadas na criação do Projeto Pedagógico de Curso (PPC) de 2005, em virtude da morosidade no atendimento das políticas públicas atuais para a Educação Escolar Indígena, bem como das transformações no cotidiano das comunidades indígenas do Amapá e norte do Pará, essa nova proposta de PPC considera os anseios apontados pelos povos indígenas em 2005 e contempla o contexto atual da Educação Escolar Indígena.

As últimas décadas foram marcadas por alguns fatores novos, tanto no plano internacional quanto nacional. Entre os primeiros, vale citar uma nova consciência em face da questão ecológica; a emergência de um novo paradigma de desenvolvimento, vinculado ao conceito de etnodesenvolvimento; bem como a redefinição das responsabilidades em nível mundial, levando à redefinição das prioridades, metas e princípios dos programas de cooperação internacional, pautados agora no conjunto integrado dos direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

No contexto brasileiro, cabe citar a consolidação no plano jurídico institucional de um novo conceito de nação, que resulta do reconhecimento da diversidade cultural e étnica da sociedade brasileira, com o consequente reconhecimento dos padrões sócio-organizativos das sociedades indígenas, inclusive de seus territórios.

A partir dos avanços verificados na legislação e no crescente reconhecimento da diversidade sociocultural, tanto no plano internacional quanto nacional, é de se esperar que a política de Educação Escolar Indígena possa abrir-se e saber valer-se das novas perspectivas que se têm apresentado. Neste contexto se inserem iniciativas de projetos destinados a atender as demandas dos povos indígenas, as quais são reflexos de mudanças profundas no contexto da política indigenista brasileira.

Para que essas políticas sejam garantidas há necessidade de ser fortalecido o projeto de autonomia dos povos indígenas, no qual a educação escolar tem um importante papel. A educação escolar tem amparo em diferentes contextos da Constituição – por exemplo, no capítulo “Dos Índios” está assegurada por meio do reconhecimento da diversidade sociocultural e linguística, na sua afirmação e manutenção. No capítulo “Da educação”, tem base no princípio norteador do ensino escolar nacional denominado pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, o qual está presente também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e no Plano Nacional de Educação.

O reconhecimento da diversidade dos povos indígenas implica em adotar uma nova concepção de educação, que possibilite a construção de especificidades pedagógicas em seu sentido mais amplo.  Estas  especificidades  deverão  incluir  as  concepções  e  práticas pedagógicas em sala de aula, os aspectos organizacionais e interculturais, como a participação dos povos indígenas e de suas comunidades nas propostas curriculares, na gestão de cursos de formação de professores indígenas, nos diferentes modelos de organização e funcionamento das escolas indígenas, na inclusão da categoria professor indígena nos planos de carreira das secretarias de educação e nos concursos para professores da educação básica.

Neste contexto é que se insere este Curso, na  perspectiva de uma política de educação intercultural, como está garantida em lei, ou seja, da consolidação de pedagogias específicas, pensadas como uma transversalidade importante no desenho curricular, partindo da realidade e do conhecimento do professor indígena, das diversas experiências e da realidade vivida por eles, suas comunidades e povos.

A formação de professores indígenas tem um papel relevante no processo de implementação e manutenção da Educação Escolar Indígena, somente após a Constituição Federal de 1988 é que os povos indígenas se apropriaram dos seus processos próprios de ensino e aprendizagem, surgindo a necessidade de cursos de formação de professores no ensino superior para que estes assumam com autonomia suas escolas.

O CLII, enquanto licenciatura específica para professores indígenas, está amparado, portanto, na Constituição Federal, que estabelece um novo quadro de relações do Estado com os povos indígenas, reconhecendo-lhes o direito de sua organização, de sua manifestação linguística e cultural e de seu modo de viver segundo os seus próprios projetos societários. Os indígenas passaram a ter direito a uma educação específica, diferenciada e intercultural, conforme os princípios do Artigo 231 e, mais especificamente, do Artigo 210: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.

O texto constitucional rompeu, portanto, com a política integracionista de homogeneização cultural e étnica e estabeleceu um novo paradigma com base no pluralismo cultural, no qual se insere o direito a uma educação escolar específica. Garante o respeito aos seus processos próprios de aprendizagem, inclusive assegurando que o ensino seja feito na língua materna dos povos indígenas, como meio de comunicação e aprendizagem.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Artigo 78, em colaboração com as agências federais de fomento à cultura e de assistência aos povos indígenas, define como dever do Estado a oferta de uma educação escolar bilíngue e intercultural, com o objetivo de fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna dos povos  e  comunidades  indígenas,  bem  como  lhes  assegurar  o  acesso  aos  conhecimentos técnico-científicos da sociedade não indígena.

Para que essa política seja cumprida, o Artigo 79 da LDB determina que a União deverá apoiar técnica e financeiramente o desenvolvimento da educação intercultural às comunidades indígenas, e determina que haja a articulação dos sistemas de ensino para a elaboração de programas integrados de ensino e pesquisa, os quais deverão ser construídos com a participação dos indígenas, com os objetivos de incluí-los nos Planos Nacionais de Educação (PNE). Sendo que tais programas deverão ter os seguintes objetivos: fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna[1] de cada comunidade indígena; manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas; desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades e elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado.

Com o avanço no marco regulatório sobre a Educação Escolar Indígena e a implementação dos cursos de Magistério Indígena em nível de Ensino Médio reconhece-se a demanda para a formação de professores indígenas em nível superior. Para atender os encaminhamentos das resoluções vigentes construiu-se um instrumento de Referencial Curricular Nacional para a Educação Escolar Indígena (RCNEI, 1998), pautado nos princípios de multietnicidade, pluralidade e diversidade; educação e conhecimentos indígenas; autodeterminação; comunidade educativa indígena; educação intercultural, comunitária, bilíngue/multilíngue, específica e diferenciada.

A Resolução n° 03 do Conselho da Educação Básica, do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE), de 10 de novembro de 1999, estabelece, em seu artigo 1º, que:

 

[…] no âmbito da educação básica, a estrutura e o funcionamento das Escolas Indígenas, reconhecendo-lhes a condição de escolas com normas e ordenamento jurídicos próprios, e fixando as diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngue, visando à valorização plena das culturas dos povos indígenas e à afirmação e manutenção de sua diversidade étnica.

 

Vale lembrar que a formação e a habilitação dos professores indígenas, inclusive no ensino superior, é um requisito para que se assegure o cumprimento desta Resolução, que inclusive garante a formação específica dos professores indígenas em serviço e, quando for o caso, concomitantemente com a sua própria escolarização.

Cabe mencionar também o PNE, que foi sancionado por meio da Lei n° 10.172, de 09 de janeiro de 2001, e que dispõe de um capítulo específico para a Educação Escolar Indígena. O CLII atende ainda à Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Essa convenção assegura aos povos indígenas o direito de adquirir uma educação específica e diferenciada em todos os níveis de ensino, em condições de igualdade com o restante da comunidade nacional. Direitos consolidados no Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004.

Entendeu-se que para os povos indígenas obterem sua autodeterminação e tratar das questões que lhes digam respeito, sejam as de natureza socioeconômica, sociocultural, linguística, ambiental, de saúde ou educacional, precisam de uma equipe de diversos profissionais indígenas, pois estes têm um papel importante na luta pela “perpetuação de suas culturas e territórios” (PPC/CLII, 2005, p.13).

A dificuldade de promoção da Educação Escolar Indígena nas aldeias, vivenciada pelos povos indígenas do Amapá e norte do Pará, foi levada ao conhecimento dos órgãos competentes e fez com que estes se posicionassem e solicitassem à UNIFAP contribuições para a formação de professores indígenas em nível superior. Naquele momento foram realizadas reuniões de articulação nas cidades de Macapá, Oiapoque e ainda nas aldeias indígenas, para a discussão da implementação do Ensino Superior Indígena, envolvendo as seguintes instituições: Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de Brasília, representada pela Consultora Profª Marlinda Patrício; FUNAI de Macapá, representada pelo Administrador Sr. Mouzar Borges e a Chefe do Setor de Educação, Profº Maria Sely Rodrigues; FUNAI de Oiapoque, representada pelo Administrador Sr. Domingos Santa Rosa e a Chefe do Setor de Educação, profesora Lucília Lod; Associação dos Povos Indígenas do Parque Indígena do Tumucumaque (APITU), representada pelo Presidente, Sr. Ariné Apalaí e membro Sr. Juventino P. Júnior (Kaxuyana); Conselho das Aldeias Wayãpi, representado pelo Presidente, Sr. Kaitona Waiãpi; Conselho Escolar Waiana-Apalai, representado pela Presidente professora Elizabete dos Santos Pisa; Associação dos Povos  Indígenas do Oiapoque (APIO), representado por Robersoni Aniká; Câmara dos Vereadores do Oiapoque, representado por Estácio dos Santos; Representação dos Professores Indígenas, representado pelo professor Walter Vasconcelos dos Santos; Núcleo de Educação Indígena, representado pela professora Patrícia Borges; Conselho Estadual de Educação (CEE), representado pela professora e Linguista Iraguacema Lima Maciel e UNIFAP, professora Simoni Maria Benício Valadares.

A primeira reunião dos povos indígenas com a UNIFAP ocorreu em abril de 2002, quando as lideranças apresentaram as demandas e reivindicações sobre o acesso ao Ensino Superior indígena aos Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação e Ensino da Graduação, respectivamente, professores José Maria da Silva e João Nascimento Borges Filho. Numa segunda reunião, reconheceu-se a demanda existente e foi criado um Grupo de Trabalho (GT) que pudesse fomentar as discussões das ações voltadas ao acesso ao ensino superior indígena. Numa terceira reunião discutiu-se a formação superior, por meio de sistema de cotas, magistério superior e cursos específicos e a composição do GT interinstitucional, envolvendo órgãos ou instituições com legitimidade quanto ao desenvolvimento de atividades na temática. Desse modo, foram indicados os membros titulares e suplentes para a composição do GT, institucionalizado pela Portaria nº 859/2003, de 26 de novembro de 2003, expedida pelo Reitor em exercício João Nascimento Borges Filho. Naquele momento o GT foi composto pelas seguintes entidades: Universidade Federal do Amapá, Núcleo de Educação Indígena – NEI/SEED, FUNAI-Brasília, FUNAI-Oiapoque, FUNAI-Macapá, Associação Galibi- Marworno – (AGM), Associação dos Povos Indígenas de Oiapoque (APIO), Conselho das Aldeias Waiãpi – (APINA), Associação dos Povos Indígena Waiãpi Triângulo do Amapari (APIWATA), Associação dos Povos Indígenas do Parque do Tumucumaque (APITU), Centro de Cultura Waiana-Apalai, Instituto de Pesquisa e Formação – IEPÉ, Conselho Estadual de Educação (CEE), Comissão Nacional de Professores Indígenas (CNPI), Divisão de Ensino Médio (DIEM), Câmara de Vereadores de Oiapoque, Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).

As principais questões levantadas pelo GT no que se refere ao ensino superior foram: a) dificuldade para prosseguir os estudos após o Ensino Médio no que se refere ao acesso e permanência ao ensino superior, somado isso, ao fato de serem casados e terem famílias nas aldeias  (questão  cultural);  b)  as  questões  educacionais  são  reivindicações  das  próprias  comunidades indígenas; c) a criação do Núcleo na UNIFAP responsável pelas ações para atender a educação superior dos povos indígenas e ainda as vagas destinadas aos indígenas para  cursar  o  Ensino  Superior;  e  d)  demanda  crescente  de  professores  indígenas  para formação superior.

A partir dessas  discussões,  em  2004  foram  definidas  as  seguintes  metas  para que fosse assegurada a implementação de uma política de acesso e permanência de indígenas na UNIFAP: a) diagnosticar as demandas para a formação superior indígena; b) elaborar uma proposta de curso específico a ser implantada pela UNIFAP (PPC/CLII, 2005); c) viabilizar políticas públicas para o atendimento a formação superior indígena; d) definir e implementar a capacitação e formação dos professores do magistério superior, no sentido de atender e se adequar a proposta do curso; e) propor à Pró-Reitoria de Graduação a criação de um Núcleo gestor ligado diretamente a esta; f) fazer circular sistematicamente as informações das discussões do GT nas diferentes instituições parceiras; g) definir um espaço físico para funcionar o GT de forma permanente; e, h) encaminhar solicitações de cotas e sistema de vagas especiais.

Assim, em 2007 o Curso teve início com o ingresso da primeira turma constituída por 30 (trinta) discentes indígenas dos povos Galibi-Marworno, Galibi-Kalinã, Karipuna, Palikur, Waiãpi, Apalai e Kaxuyana. Apesar do Curso também atender os Waiana e Tiriyó, não houve ingresso de discentes desses povos no primeiro Processo Seletivo Indígena (PSI).

Em 2011 a primeira turma concluiu o Curso, cujo reconhecimento ocorreu em 2013, com a obtenção do conceito 03, de acordo com o Ministério de Educação Portaria n° 546/2014/SRES/MEC. Ressalta-se que, por ser um Curso regular da UNIFAP, desde 2007 ocorre o ingresso anual de 30 (trinta) discentes.

Desde a criação do CLII ocorreram reformulações na legislação da Educação Escolar Indígena, como a homologação da Resolução n° 05 de junho de 2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena, na Educação Básica, pautadas pelos princípios da igualdade social, da diferença, da especificidade, do bilinguismo e da interculturalidade. Tão importante quanto essa, foi homologada a Resolução n° 01 de janeiro de 2015, que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas em cursos de Educação Superior e de Ensino Médio e dá outras providências.  O objetivo dessas diretrizes é: “regulamentar os programas e cursos destinados a formação inicial e continuada de professores indígenas no âmbito dos respectivos sistemas de ensino, suas instituições formadoras e órgãos normativos”. Para atender essas resoluções vigentes, o Curso atualizou seu Projeto Pedagógico com a prerrogativa de incorporar as novas orientações legais e as demandas dos povos indígenas do Amapá e norte do Pará.

[1] Entende-se por língua maternal a língua em uso nas comunidades indígenas.